Finalmente criei um blog, mas infelizmente os textos que coloco não são da minha autoria, um dia, quem sabe, me atrevo a escrever alguma coisa.
Estou tentando, ao máximo, ser fiel aos escritores, mas nem sempre consigo, então na incerteza da autoria, estou colocando AD (Autor Desconhecido). Com relação às fotos, estou buscando no Google e não cito as fontes por não saber a quem pertence.
Caso você encontre aqui algum erro de autoria, alguma foto que não posso usar sem citar a fonte, favor comunicar.

Meus beijos e sejam bem vindos!
Virgínia Costa

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Carta (1)


Meu amado e saudoso,

Faz tanto tempo desde a sua partida e ainda sinto sua presença a meu lado, veja só, você me transformou numa viúva que dá trela a fantasmas. Ainda converso com vc quando estou na cozinha lavando meu único prato, meu único copo e meu par de talheres, quase posso enxergá-lo sentado aqui nesta mesa de fórmica fumando seu último cigarro e divertindo-se com minhas tagarelices antes de se deitar. Mas hoje já não tenho tanta vontade de conversar, não consigo acompanhar o ritmo da Valéria nas poucas vezes em que ela aparece para uma visita. Ela fica me corrigindo todo hora, não tem a menor paciência comigo. Está uma quarentona muito bonita. Mas dura.

Sorte sua não ter envelhecido, é a única vantagem de a morte ter lhe buscado aos 58. Você não precisou passar pelo constrangimento de virar um idoso nesta terra de apressados. Ninguém me olha, e quando me olham não enxergam minha precariedade. Exigem de mim rapidez na fala, no caminhar, no raciocínio, como se eu fosse lenta por implicância, como se eu tivesse prazer em hesitar. Valéria fica irritada por eu não ser mais a mulher ágil que fui antigamente. Não sei se ela percebe o quanto me cobra. Esta menina não se convence de que, se tanto repito e gaguejo, não é pelo prazer de torturá-la. Querido, me sinto envergonhada por estar tão enferma sem estar doente. O nome disso é decadência. Não controlo mais as minhas vacilações. Sou um corpo a serviço da humilhação.

Você não precisou passar por esta injustiça divina. Vou contar como é. Tenho o dia inteiro para escrever e você uma eternidade par me escutar.

Esquecida eu sempre fui, não é de agora. Moça ainda, trocava o nome das pessoas e o nome das coisas, lembra como você de mim? Ficou sendo o meu charme. Mas hoje me assusto. As palavras não me chegam. Em certos momentos estou com elas prontinhas na boca, mas desaparecem no instante em que vou falar. Somem sem dar-me a chance de um adeus. E, junto com elas, some todo o meu pensamento, toda a razão da conversa. Fico como uma pateta no meio do caminho, sem concluir o que havia iniciado. Disfarço, mas não gostaria de disfarçar, queria que todos prestassem bem atenção em como isso acontece e entendessem que não é de propósito que eu não completo minhas frases, não é de propósito que ando devagar, não é de propósito que meu cheiro não é agradável. Não estou querendo punir ninguém com a minha velhice.

Quando eu era bem menina, brincava com minha irmã de esconder pequenas coisas em uma das mãos. Cruzava os dois braços atrás das costas e pedia para ela escolher: adivinha em que mão está a tampinha, adivinha em que mão está a moeda. Ela escolhia um dos braços, eu trocava o objeto de mão caso ela tivesse acertado e só então mostrava a minha palma aberta e vazia: errou.

Sinto como se Deus tivesse feito a mesma brincadeira comigo. Cruzou os seus dois braços por trás e pediu que eu escolhesse. Só que não havia tampinha, não havia moeda. A escolha que Ele me deu foi entre a morte e a velhice. Melhor envelhecer, evidente. Minha opção é por viver até quando der. Mas eu desejava um terceiro braço, uma alternativa menos incômoda: a lucidez intacta. Sem nenhuma armadilha. Sem lapsos. Sem o afinamento da minha pele – estou ficando transparente! E sem os joelhos fracos. Você não sabe a importância de um corrimão. Não faz idéia.

Valéria reclama das minhas roupas, me acusa de ter perdido a vaidade. É engraçada esta menina. Não se dá conta de que não há mais lojas que atendam às minhas necessidades, não percebe o tamanho dos meus ombros, dos meus quadris. E a danada foge do meu abraço, me beija rápido com receio de que eu a retenha junto À minha face, e eu a reteria mesmo se isso não lhe provocasse tanto asco. Ela se justifica dizendo que exagero no perfume.

Não lembro se eu era tão rigorosa com minha mãe. Morreu depois de você, ao redor dos 90, e não me atrapalhou a vida, nem me afrontou com seu definhamento, até onde recordo. Se bem que, depois que as mães se vão, como não absolvê-las? Valéria retruca, diz que eu era igualzinha, sem tirar nem pôr: impaciente ao falar com mamãe ao telefone e queixosa de suas manias, principalmente da sua avareza. Mas creio que fui atenciosa com ela, tratava-a com cuidado e calma, entendia suas limitações. Tenho quase certeza que sim.

Ganhei um colar lindo no meu último aniversário. Gerusa me deu – está viva ainda! Outro dia vi no obituário do jornal o nome de uma Gerusa e pensei: lá se foi mais uma de nós. Afinal, não são tantas as Gerusas na cidade. Mas não era ela. Obituário é vício, minha diversão mórbida e secreta. Antes eu me chateava ao ver os nomes das minhas ex-colegas nas participações de falecimento, ou os de seus amigos, mas agora penso: “antes ele do que eu”. E quando é alguém que mereça que eu dê uma passadinha no velório, quase agradeço essa morte que me tira um pouco de casa e me distrai. Quase nunca saio. Não sei onde usar o colar que Gerusa comprou para mim. Quando o mostrei para Valéria, pude perceber em suas feições que ela considerava um desperdício um colar tão moderno e vistoso repousar numa gaveta, ou, alternativa pior, no colo amarfanhado de uma velha. “Vai ser seu”, eu disse a ela, sorrindo. Ela respondeu “eu sei”, sorrindo mais ainda, e fiquei impressionada ao ver como podemos ser civilizadas e brincalhonas diante do terror.

Você nunca ficou doente. Nunca mesmo, que eu me lembre. Eu também não estou com nenhuma doença séria, os médicos me fazem agrados, pedem exames e depois de avaliarem o resultado me chamam de garota, fingem que sou imortal, mas tudo me dói, cada dia surge uma pontada em um lugar diferente do corpo, e estas são as que me inquietam, as dores móveis. As fixas, que latejam sempre no mesmo lugar, são como se fossem da família. Sentiria falta delas caso me deixassem.

Que bom que você escapou. Nunca saberá como é duro despedir-se de si mesma todas as noites, antes de dormir, temendo falecer sozinha durante o sono. Mas não virei uma anciã trágica, no fundo, sei que vou acordar amanhã, nem que seja para escrever longas cartas pra você, que me acompanha mais com sua ausência serena do que aqueles que me escutam mais ou menos, sempre de olho no relógio.

Até breve.

Clô


(Carta do livro “Tudo que eu queria te dizer” da Martha Medeiros)

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