Finalmente criei um blog, mas infelizmente os textos que coloco não são da minha autoria, um dia, quem sabe, me atrevo a escrever alguma coisa.
Estou tentando, ao máximo, ser fiel aos escritores, mas nem sempre consigo, então na incerteza da autoria, estou colocando AD (Autor Desconhecido). Com relação às fotos, estou buscando no Google e não cito as fontes por não saber a quem pertence.
Caso você encontre aqui algum erro de autoria, alguma foto que não posso usar sem citar a fonte, favor comunicar.

Meus beijos e sejam bem vindos!
Virgínia Costa

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Carta (2)


Raul,

Sei bem do que você vai me chamar. Louca. Não será a primeira vez, mas agora talvez tenha um motivo, basta que leia esta carta até o fim. De louca você me acusará e tem a prova nas mãos.

Tive um sonho esta noite. Eu caminhava entre uma multidão e, na direção contrária, vinha um homem. Ele trazia uma mochila nas costas. Nossos olhos se cruzaram e eu tive certeza de que era ele. Que seria meu. Que era o amor que eu aguardava. Tinha um rosto familiar. Era o irmão de uma amiga da adolescência. Eu vi o irmão dessa garota apenas uma vez na vida, aos 15 anos. Não entendo, nunca troquei palavra com esse cara, nunca mais o vi depois dos 15, nem de perto, nem de longe. Não sei se hoje é casado, gay, bispo, em que país vive, e se vive ainda. Lembro apenas do seu nome. João. Eu e João trocamos um olhar penetrante no meu sonho, então ele passou por mim, e eu por ele, cada um no seu caminho. Alguns passos adiante, virei pra trás, olhei, ele estava olhando também, mas nenhum de nós parou. Até que percebi que estava com a mochila dele em minhas mãos, e minha bolsa havia sumido. Não havia explicação. Voltei correndo para procurar minha bolsa, e para procurá-lo. O ambiente parecia uma estação ferroviária. Cruzamos outra vez. Ele estava com a mochila dele. E minha bolsa estava comigo. Sonhos são desse jeito.

Dali em diante, não nos desgrudamos mais. Ele me pegou pela mão, me levou para algum lugar. As mãos dele nas minhas. Como se já fôssemos namorados. Antes de qualquer palavra. Então eu disse a ele — e foi a única coisa dita: se isso tudo acabar agora, vai ter valido a minha vida. E o beijei.

Dormindo, senti aquele beijo como se João estivesse inteiro dentro da minha boca. Foi um beijo cheio. Longo. Delicioso. Um beijo enorme, um beijo doce. Quente. Sexy. Meu corpo reagiu, fiquei excitada, nesse instante houve uma fusão entre sonho e realidade, enquanto o beijava eu pensava: não acorde, não acorde. Mas esse breve instante de consciência me despertou. E eu já não era a mesma.

Raul, foi só um sonho. Mas com uma carga de certeza que me perturba e dói. Eu sou aquela mulher do sonho, atrás de um amor, encontrando um amor, e o perdendo para minha rotina matinal: acordar, tomar banho, levar as crianças ao colégio, trabalhar, almoçar, morrer.

Eu vou atrás dele, Raul. Não vou fazer terapia, não vou me afogar em uísque, não vou descontar minhas frustrações em você, não vou comprar roupa nova, não vou cortar o cabelo, não vou tomar remédio para dormir, não vou esperar as crianças crescerem. Eu vou atrás dele. Desse homem que nunca conheci de fato, mas que existe de outra forma, que existe com outro rosto e outro nome, que existe no meu futuro, se o futuro eu permitir que aconteça. Não quero mais o presente, não quero mais a paralisia, o pra sempre. Alguém espera por mim. Alguém não vê a hora de eu chegar. Eu não vejo essa hora. Daqui, não alcanço esse sonho. Eu me vou.

Não é o momento de falar sobre coisas práticas. Se estivéssemos conversando pessoalmente, além de me agredir, você faria perguntas irritantes: e nossos filhos, nosso dinheiro, nosso apartamento, como explicaremos, como faremos, e nossa reputação, e nossa viagem de final de ano? Esqueça tudo isso. Me enxergue. Eu preciso daquele beijo antes que não seja mais capaz.

Não quero amantes. Não quero a mentira. E nem o sonho quero mais. Eu necessito daquele beijo para seguir acordando todas as manhãs. Senão, vou desejar dormir cedo todos os dias, fugindo para poder extrair do imaginário uma vida que não tenho. Aquele beijo me despertou para o meu vazio. Quero um amor dentro da minha boca.

Raul, antes de chamar um advogado, sente no sofá com esta carta nas mãos e chore por mim, me sinta, faça um esforço para ir além das questões burocráticas de um casamento. Me reconheça ímpar. Impaciente. Só. Muito antes de louca. Muito antes e muito mais. Louca é pouco.

Vou passar o final de semana fora, sozinha. E, quando voltar, as perdas serão calculadas, as malas serão fechadas, as crianças serão preservadas e as vidas seguidas.

E eu, então, irei atrás do meu instante.

Renata


(Carta do livro “Tudo que eu queria te dizer” da Martha Medeiros)

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